terça-feira, 19 de agosto de 2008

Sobre Aprender A Ficar Quieto

Uma sequência de eventos até certo ponto provável, que poderia mas não foi prevista, se abre esta noite pra mim como uma educação da conduta. Parece ordem expressa da intuição, que só se mostra mediante permissão nossa, e a sabedoria talvez seja sempre saber, e cada vez mais, dar-se essas permissões à intuição, adotar daí em diante o que ela oferece humildemente, de coração. Comprovar empírico-estatisticamente sua validade.

Eis a série: coube a mim comentar a um mui amigo algo sobre minha vontade de exercer lutheria de pianos, delicadeza que respeito com toda força, diante do mistério de alguém que decide guiar sua vida a isso. O fato desse mistério se colocar hoje bem na minha frente tem pra mim a força de mostrar o quão íntimo é o assunto. Quanto ao mui amigo, somos realmente bons amigos, e deve haver algo entre amigos como uma certeza de mútua compreensão, mesmo entre almas o mais diferentes. Por isso, é claro, não foi esse o problema, e sim a terceira pessoa, presente e participante, nada próxima do meu mundinho, estávamos assim trabalhando os três. Assim, tal presença ouviu minha declaração, declarou sua grata surpresa, mas como alguém que fala sem ciência da própria presença, como muita gente, enfim.

Assim que falei, e mesmo enquanto falava, e antes de qualquer outro dizer qualquer coisa, me correu na espinha um raio frio. Por ter eu falado demais, muito demais. Demais, sim, e então denuncia-se sem volta o momento artificial, que já era doído ali, antes da minha fala. Por que não ficar em silêncio? Por que falar isso pra ele, com que intuito? Silêncio, sim, respeito e prudência. Senti dizendo-me, da boca pra dentro, que não devia ter falado nada. O assunto se foi, o trabalho terminou, mas a bronca que me dei conservava o efeito.

Mais uma pessoa desencaixada a mim, cujo mundo também desentendo (isso a gente sabe de coracão, nisso reside a possibilidade de ser tranquilo) ficou sabendo do piano, veio então noutro dia, falar comigo. Achou legal. E esse é o fim até aqui. Pra mim a confirmação datada de minha desobediência. Claro que foda-se onde vai parar a história e quem mais a escutar, não é nada disso. Consequências são uma borrifada de vida, despejada por quilômetros, de um avião velho.

O ponto no caso é não ter sabido a medida, o momento, creio eu. Devo sabê-lo? Parece que sim, inadvertidamente, sem saber, como a gente sabe que vai chover. Meu mui amigo disse outro dia mesmo algo sobre dominar o sono, que é o poder nas mãos de uma pessoa quando alguém aceita dormir diante dela. Dominar o sono de outro. É uma confiança recebida de bom grado, mãos abertas. Eis que dormi então, na frente daquele sujeito. Melhor seria, então, dormir mais em presença da minha cabeça maluca.

domingo, 3 de agosto de 2008

gaveta ao avesso

hum... isso cheira mofo, mas eu gosto.
Quem nunca teve uma gaveta virada ao avesso?
Memória, Interno, segredo.
Porém, o estático agora toma corpo e segue seu próprio fluxo.
O texto tecido agora não mais escondido
e sim em constante tranformação.

Ode a Clarice

Acho que estou perto de um coração selvagem...
Não sei como, apenas sinto. Há uma continuidade...
Não há nada que não seja isto,
e nada que não seja aquilo.
Há uma continuidade infinita
e uma interdependência de vários...
que se fundem...
Vários se tornam o mesmo.
Não há conhecimento de algo se não houver experimentação
dele, e de outros.

A distinção existe para quem a quer.

É preciso renúncia.
E o novo.
A posse de uma concepção
concreta
limita a essência.
Limita-se a um começo
e a um final.
Eu fico nela, ali,
onde coisas indicam o indizível...

"Era como um pássaro abrigado sob uma leve folha que pisca ao sol quando a folha se move; e estremece ao estalido de uma galho seco. Estava exposta; cercada pelas enormes árvores, pelas vastas nuvens de um mundo indiferente, exposta; torturada; e por que deveria sofrer? Por quê?"
Woolf, Virginia. Mrs. Dalloway.

Véspera de alguma coisa

"Alguma coisa começa para acabar: a aventura não admite prolongamentos artificiais; só de sua morte lhe vem o sentido. Sem possibilidade de voltar atrás, sou arrastado para essa morte, que talvez seja também a minha. Cada instante só aparece para trazer os que lhe seguem. Sinto-me ligado a cada um, do fundo do meu coração. Sei que ele é único, insubstitutível - e não faria, porém, um gesto para o impedir de voltar ao nada. Um último minuto que passo - em Berlim, em Londres - nos braços de certa mulher encontrada na antevéspera - minuto que amo com paixão, mulher que estou perto de amar - esse minuto vai acabar, bem sei. Daqui a nada partirei para outra terra. Não voltarei a encontrar esta mulher, nem esta noite, nunca mais. Debruço-me sobre cada segundo, tento esgotá-lo; nada se passa que não note, que não se fixe em mim para o todo sempre nem a ternura fugitiva destes lindos olhos, nem os ruídos da rua, nem a claridade dissimulada da manhãzinha; e entretanto o minuto corre, e não o retenho; gosto que passe".

Sartre, Jean Paul. A náusea.