Uma sequência de eventos até certo ponto provável, que poderia mas não foi prevista, se abre esta noite pra mim como uma educação da conduta. Parece ordem expressa da intuição, que só se mostra mediante permissão nossa, e a sabedoria talvez seja sempre saber, e cada vez mais, dar-se essas permissões à intuição, adotar daí em diante o que ela oferece humildemente, de coração. Comprovar empírico-estatisticamente sua validade.
Eis a série: coube a mim comentar a um mui amigo algo sobre minha vontade de exercer lutheria de pianos, delicadeza que respeito com toda força, diante do mistério de alguém que decide guiar sua vida a isso. O fato desse mistério se colocar hoje bem na minha frente tem pra mim a força de mostrar o quão íntimo é o assunto. Quanto ao mui amigo, somos realmente bons amigos, e deve haver algo entre amigos como uma certeza de mútua compreensão, mesmo entre almas o mais diferentes. Por isso, é claro, não foi esse o problema, e sim a terceira pessoa, presente e participante, nada próxima do meu mundinho, estávamos assim trabalhando os três. Assim, tal presença ouviu minha declaração, declarou sua grata surpresa, mas como alguém que fala sem ciência da própria presença, como muita gente, enfim.
Assim que falei, e mesmo enquanto falava, e antes de qualquer outro dizer qualquer coisa, me correu na espinha um raio frio. Por ter eu falado demais, muito demais. Demais, sim, e então denuncia-se sem volta o momento artificial, que já era doído ali, antes da minha fala. Por que não ficar em silêncio? Por que falar isso pra ele, com que intuito? Silêncio, sim, respeito e prudência. Senti dizendo-me, da boca pra dentro, que não devia ter falado nada. O assunto se foi, o trabalho terminou, mas a bronca que me dei conservava o efeito.
Mais uma pessoa desencaixada a mim, cujo mundo também desentendo (isso a gente sabe de coracão, nisso reside a possibilidade de ser tranquilo) ficou sabendo do piano, veio então noutro dia, falar comigo. Achou legal. E esse é o fim até aqui. Pra mim a confirmação datada de minha desobediência. Claro que foda-se onde vai parar a história e quem mais a escutar, não é nada disso. Consequências são uma borrifada de vida, despejada por quilômetros, de um avião velho.
O ponto no caso é não ter sabido a medida, o momento, creio eu. Devo sabê-lo? Parece que sim, inadvertidamente, sem saber, como a gente sabe que vai chover. Meu mui amigo disse outro dia mesmo algo sobre dominar o sono, que é o poder nas mãos de uma pessoa quando alguém aceita dormir diante dela. Dominar o sono de outro. É uma confiança recebida de bom grado, mãos abertas. Eis que dormi então, na frente daquele sujeito. Melhor seria, então, dormir mais em presença da minha cabeça maluca.